sexta-feira, 15 de abril de 2011

Tragédia de Realengo - fatalidade ou sintoma social?

Laércio Martins - Te vi! óleo sobre tela 60 x 40


A violência é um sintoma. A doença é carência de poder, a insignificância, a injustiça – em suma, a convicção de que a pessoa está abaixo do humano e não tem ponto de referência no mundo. Para empregar um termo conveniente, identifiquei a doença como impotência, sem entretanto deixar de reconhecer plenamente que a violência exige também, para ser desencadeada, alguma promessa, um desespero combinado com a esperança de que as condições só podem melhorar através da dor ou da morte de alguém. ( Rollo May, p.172) 1

Foto : Domingos Patena Portugal

Não é possível examinar a tragédia de Realengo sem começar pelo ponto de partida da vida do jovem que a provocou, bem como não podemos deixar de inserir sua história no contexto social em que vivemos.

Filho adotivo, acolhido numa família numerosa, sendo a mãe biológica, vítima de patologia psíquica grave que a levou a cometer suicídio. Não sabemos que tipo de ambiente o rapaz enfrentou no lar que o adotou. Mesmo as crianças filhas legítimas, vez por outra são tomadas pela terrível desconfiança de terem sido adotadas o que acarreta uma enorme angústia, então podemos imaginar o desafio de uma criança adotada que não tenha sido devidamente amparada emocionalmente. Seu comportamento descrito por familiares, vizinhos, colegas de escola e trabalho, sempre foi arredio no mínimo incomum, e estranhamente, a única manifestação conhecida para tratar do problema teria sido a visita ao psiquiatra que abandonou. Talvez abandonado por todos, o jovem tenha buscado refugio em seu mundo imaginário onde teria poder; o poder de ser visível e inocente. Fixado no mundo virtual da internet como ficou demonstrado, foi buscar uma identidade que o fizesse existir no mundo vasculhando nos retalhos maltrapilhos de nosso atual tecido social, nele encontrando informações que por faltar orientação o moldaram. A violência segundo Rollo May, é ausência de significado, num mundo que fomenta e mitifica banalidades, não ter expressão social nenhuma é uma radical exclusão. Welligton, sentindo-se sem saída no mundo real, apelou para uma saída de emergência, a sua longa barba, não fez dele um profeta, não deu a ele algo que o purificasse, era urgente precisava morrer para finalmente existir e expurgar uma dor que ele não sabia dar nome. De que forma ele poderia se tornar visível, inocente e poderoso ao mesmo tempo para o outro? Através do buraco da fechadura do mundo virtual e da mídia ele via o mundo, e exatamente por esse canal o mundo poderia finalmente enxergá-lo em seu Reality Show, assim como sentenciou: “descobrirão quem sou da maneira mais radical”. Numa época em que a celebrização tornou-se compulsiva e quase obrigatória ele precisava criar um outro eu que ao mesmo tempo lhe desse a chance de existir e num último ato celebrizar-se ainda que por um viés distorcido. Na sua realidade ele disse sentir-se bom, inocente, fraco, indefeso, vítima de: “pessoas cruéis, covardes que se aproveitam da bondade, da inocência, da fraqueza de pessoas incapazes de se defender” assim como ele durante anos sentiu calado e sozinho. Ele acreditava que não tinha mais lugar na sociedade, que de alguma forma já havia sido expulso da casa/mundo, mas antes de sair, apesar de tão recluso e calado, se utiliza de um recurso que o transformará numa “celebridade póstuma” e expõe a platéia/mundo seu depoimento, numa espécie de confessionário com câmera. Para provar sua inocência, garantir seu pertencimento social ele se transforma num “poderoso vingador” dos “: irmãos que morreram no passado” e para isso, o recurso que dispõe por lhe faltar uma forma de simbolizar sua dor é sacrificar inocentes, chamando assim atenção para algo que: ” não é exclusivamente pelo que é conhecido como Bulling”, mas para além disso, toda uma sociedade que não lhe exigia satisfação, por “ser falsa e covarde” Assim ele coloca no paredão toda o público perplexo em busca de uma lógica que certamente não está em Welligton por mais absurdo que possa parecer, pois trata-se de um sintoma social, que assim como uma febre, sinaliza a necessidade de exames mais profundos da forma como estamos conduzindo nossas vidas em sociedade.

Em memória das crianças vitimadas pela tragédia e em respeito e solidariedade aos familiares precisamos abrir um debate mais profundo onde toda a sociedade se envolva pois : “ O que implica alguma coisa relacionada à solidariedade humana: somos todos parte do trágico acontecimento. Sem uma rendição da própria consciência, ninguém pode hoje se proteger sob sua capa moral e pretender uma imunidade ao que está acontecendo lá fora.” (Idem, p 144).


Margareth Bravo


Foto: Filipe Arruda Portugal

Obs: Este texto se propõe a atender ao pedido da amiga Ângela Medeiros.


Leitura recomendada: Bittencourt, Renato. Apareço, logo existo. Revista Filosofia - editora Escala - Ano IV - Edição 57 - Março/2011. Rio de Janeiro. Ano IV - Edição 57 - Março/2011, p. 14. clique aqui

Notas:

1 – May, Rollo. Poder e Inocência. Rio de Janeiro. Editora. Artenova, 1974.

2 - http://g1.globo.com/videos/rio-de-janeiro/

6 comentários:

  1. Muito lúcidas suas colocações a respeito dessa tragédia urbana.

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  2. Luciana Soares Marques16 de abril de 2011 às 16:40

    Como escreve bem essa minha prima!
    Concordo plenamente com suas reflexões. Acrescento, hoje está difícil educar porque os filhos e alunos estão com todos os DIREITOS e nenhum DEVER.E coitada das educadoras,digo professoras todos os DEVERES e nenhum DIREITO.Reflita e escreva sobre esse assunto também. bjs LU

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  3. A violência é um fenômeno resultante de várias causas entre elas podemos citar a mudança no perfil da família, a conquista da liberdade feminina, o regime econômico vigente, a desvalorização da escola e do professor, a perda de referência do que é comum e do que é normal... O que podemos constatar é uma "perda", se é que podemos dizer isso, da consciência humana junto com os valores, boa educação e ética. Se é possível reverter este quadro? Não sei. Mas uma coisa é certa,não existe a ordem sem o caos, e este já estamos vivendo. O homem desenvolveu uma enorme intolerância pela sua própria espécie e em virtude disso, sente-se no direito de realizar qualquer ação, até mesmo matar com ou sem sã consciência.
    Um abraço!

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  4. Adorei seus texto, pena que pra ele ter sido escrito muitas vidas tenham sido ceifadas.
    Acho que você devia fazer Psicologia ou, ao menos, se aprofundar nela.
    Bjs

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  5. Querida Mag, obrigado por suas reflexões sensíveis, lúcidas, importantes. Parabéns, também, ao Laercio, pela bela pintura.

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  6. Para completar, uma breve reflexão: Sem dúvida, são várias as causas que levam à violência, mas a falta de amparo, de "mão estendida", é, muito possivelmente, o estopim do ATO.

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